27.3.07

Reflexões sobre o Instruções...

A Katarina Peixoto* gentilmente publicou este artigo sobre o Instruções... em seu blog www.palestinadoespetaculo.zip.net e, com a devida autorização, reproduzimos aqui.

Instruções para Abrir o Corpo em Caso de Emergência é o nome do trabalho do PROJETO MAX, em parceria com Tatiana da Rosa, do ARTERIA – Artistas de Dança em Colaboração. Lá no folder nos é dito que as instruções consistem em apresentar o corpo virado ao avesso, no palco. E somos jogados num abismo denunciado, agoniante, que apresenta três marcas normativas ou três lembretes, sem os quais o corpo não se pode abrir. A emergência fica em nossos fígados, como que atacados por um anzol: o abismo é o mundo que jogou o corpo fora, tornando-o, antes de qualquer coisa, um objeto a ser perseguido. O corpo a ser aberto também precisa ser achado.

Que o corpo está na escuridão isso fica claro quando se vai à padaria ou quando se paga uma conta. Torna-se nítido quando se liga a televisão e explode reluzente como uma das mais poderosas ausências deste mundo. As instruções para abrir o corpo assumem como ponto de partida que a busca do corpo não é tarefa fácil: o que se vira ao avesso é antes um campo perceptivo – uma realidade que surrupiou a força e lugar da carne, o sentido e a dignidade do corpo – que o corpo. Foi isso uma das coisas que me perturbou, na maior parte do espetáculo.

Mas diabos, que é que é esse campo perceptivo? Uma escuridão, espécie de abismo onde vamos tateando, como tendo nas mãos as três lanternas ou lembretes ou marcas normativas de que falei, acima. São elas: 1.o sangue que circula em nós; 2.o outro que nos move e se move em nós; 3. a coragem. A primeira coisa que vemos é que o sangue circula, apesar e com toda a escuridão ao redor. O par Alexandra Dias e Michel Capeletti dobram de tamanho no palco. Eles são atores e isso é desconcertante. Por um lado podemos experimentar possibilidades dramáticas que faltam aos bailarinos e, por outro, o escoamento do projeto através de um corpo menos trabalhado e sendo conduzido, às vezes, a fórceps, como parte da tarefa – gloriosa – de buscar o corpo e abri-lo.

Mas como ia dizendo o sangue se expande, como ocorre quando esquenta, digo, quando nos aproximamos um do outro.

Os dois primeiros lembretes só são dois porque a plasticidade desse sangue, desse fio vermelho, ligando os dois bailarinos no palco é estonteante. E dali se seguem as ligaduras, os corpos se segurando e encaixando e empurrando e apoiando. O corpo a ser aberto, seja lá onde estiver – está escuro, sim, muito escuro e o som é nervoso (que trilha, aliás!) -, é com o outro e apesar do outro. Não há a mínima, elementar, saracoteada singular no palco.

Nenhuma acrobacia, nenhum exagero. O trabalho é uma tarefa, no meio da escuridão. E as instruções parece serem sub-repticiamente deixadas de lado, enquanto não acompanharmos dois detalhes eloqüentes e um passo seguinte, plasticamente denunciatório. Os detalhes são um sopro que sai do útero, fígados e estômagos – evidencias de corporalidade – dos bailarinos. Eles não sopram: dão um muxoxo quase esgotado, quase irado, desguarnecido, solto, desparanoiado. O segundo detalhe são as orelhas agigantadas, que vão de si e perseveram não como adereço, mas como uma evidência – a maior das evidências externas, visto que permanece todo o espetáculo nos corpos – de que a receptividade tem corpo.

O passo seguinte parece uma desconstrução da falsa briga entre corpo e mente. Como se sabe, uma das marcas dessa briga conta com a evocação da nossa animalidade. Não seríamos humanos mas animais. Uma das variantes dessa conversa fiada aparece nas denúncias do corpo como coisa, como objeto tout court. É como se a coisa coisificada – hehehe – fosse outra que não uma pessoa, alguém que, entre outras coisas, tem um corpo. Eu só estou dizendo isso porque tem algo extraordinário no uso de uma capa de bicho com uma trena grudada nas costas, que veste os bailarinos e os põe de quatro, rastejando pelo palco. É simplesmente delicioso o reencontro do compromisso com a busca. Eu posso estar viajando, mas esse detalhe serviu como um protocolo, mais ou menos assim: olhem aqui, estamos levando a sério que o corpo não é uma capa e que a denúncia de coisificação precisa, antes, prestar contas a uma busca mais rigorosa: onde está o avesso dessa coisa que buscamos na escuridão?

E daí se seguem movimentos de conflito e angústia. Rastejamentos e saltos. Saltos cuja violência sobre os joelhos incomodaram, machucaram, perturbaram. Uma mistura – será isso? – de denúncia de fechamento – no movimento de saltos com as pernas dobradas sobre os próprios joelhos – e de despojamento no chão, buscando ali uma, alguma, abertura.
Instruções para abrir o copo II

Esqueci de lembrar de uma das roupas em cena: minisaiotes plissados e complementares. Lindo de morrer e tão compromissado. Aliás, o espetáculo é de um rigor plástico estonteante. É tudo bonito, mesmo. É bonito, é corajosamente bonito.

Antes de passar mal, como se dizendo: “está bem, estamos vendo que é preciso ter coragem e que estamos sob emergência”, nos despedimos dos fortes candidatos a corpos a serem abertos. Os bailarinos somem em casulos de cabides – genial a imagem. Por fim, ou quase, é isto: na busca das instruções ou na obediência que elas exigem, os candidatos à abertura do corpo formam – são autorizados a? - os seus casulos – é agoniante a possibilidade de que ali, naqueles casulos geniais, esteja o fim do espetáculo, deve-se dizer.

É a redenção na última cena que nos dá a descrição de que aquela ida lá era para um casulo. O desfecho é alegre, solto, desbragado, de seda e clarinho, tem pedras rolando e poeira saindo debaixo do tapete aéreo – a viga que se abre, na peça de André Vezon, nos enche de esperança e graça. O corpo aparece quando se leva a sério que a travessia exige coragem, e muita. Todo o suor, a concentração, o rigor da busca, terminam nos dando claridão e confiança. Talvez seja a “confiança estúpida” no que se sente, de que Tati fala – eu adorei essa expressão! -, o que é necessário, para abrir o corpo nesta escuridão.

O sangue, o outro fora e em nós e a coragem da confiança. Todas as instruções que vieram sendo construídas em debates prévios, blog e comunidade no orkut parecem derivadas dessas três lanternas. Só posso dizer que o saldo de quem participa é de gratidão e alegria. Bravíssimo, ao projeto, à realização, ao pensamento da e na coisa e ao get together de todos.

Quando saí do teatro entrei numas de que tinha visto, pela primeira vez na vida, um Gesamtkunstwerk wagneriano, como ele chamava um “Trabalho artístico compreensivo”, que contava com música, artes plásticas, dança, teatro, tudo ao mesmo tempo agora, no palco. Bob Wilson é, salvo melhor juízo, a única criança do planeta que me parecia ter levado esse projeto megalô e romântico adiante.

Isso pode nos levar ainda mais longe, mas é desconcertante ver na busca do corpo e na tarefa de instruir a sua abertura a via de reencontro desse grande projeto estético. Como se sabe, Wagner erigiu um mundo como representação de um universo perdido e fez a música para quem tem fígados treinados e ouvidos ampliados, em busca do algum sentido que restara.

Se há algum sentido e é claro que há, ele não há sem o corpo. Nem sem o sangue, sem o outro e menos ainda sem a coragem.

*Escrito por Katarina Peixoto em www.palestinadoespetaculo.zip.net
Katarina é doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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